Texto retirado do site do CLAM (Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos)

Tivemos no mês passado o lançamento da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), realizada pela Universidade de Brasília (UnB) e a Anis, que mostra como o aborto é um evento que se inscreve na trajetória reprodutiva de diferentes mulheres, independente da idade, do grau de instrução, do credo religioso. Uma em cada 7 mulheres, revelou o estudo, ao longo da sua vida reprodutiva se confrontou com a experiência de uma gravidez que naquele momento foi considerada impossível de ser assumida. Ao evidenciar tal magnitude, os resultados reiteram a importância do aborto como problema de saúde pública.

Nesse cenário, outros estudos vêm a refletir sobre esse quadro: a tese de doutorado Mulheres jovens e o processo do aborto clandestino – uma abordagem sociológica, apresentada no início de 2009 na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) pela enfermeira Simone Mendes de Carvalho[CC1] , e a pesquisa Heterossexualidade, Contracepção e Aborto (HEXCA) , coordenada pela antropóloga Maria Luiza Heilborn (CLAM/IMS).

O estudo da ENSP resultou do acompanhamento de 16 mulheres, de 18 a 29 anos, integrantes do Programa Saúde da Família no município de Cabo Frio (RJ) e analisou as circunstâncias e condições sociais, afetivas e de saúde que envolvem a mulher que realiza aborto. O histórico reprodutivo das mulheres revelou extenso uso da interrupção da gestação. Foram relatados 44 casos de gravidez, dos quais 22 foram descontinuados por meio de aborto. Os abortos foram realizados na faixa dos 14 aos 29 anos, com predominância de ocorrência entre 18 e 25 anos e redução dos números a partir dos 26. As mulheres da pesquisa tinham apenas um filho, com exceção de uma, com quatro.

Nesse universo, dez abortos foram realizados em clínicas clandestinas (onde trabalham profissionais da área de saúde) e curiosas (onde o procedimento não é executado por profissionais de saúde), nove, através do uso da droga misoprostol (conhecida comercialmente como Cytotec) e três, por meio de ervas e simpatias caseiras.

Um dado relevante do estudo refere-se à situação relacional do casal durante a gravidez. Dos 44 casos de gestação, 25 ocorreram em relacionamentos cujos parceiros não moravam juntos. Desse total, houve 16 interrupções da gestação. As outras 19 gravidezes aconteceram em relações conjugais vividas sob um mesmo teto. Nesses casos, houve apenas seis abortos. A participação dos parceiros, além do papel das mães, é fundamental na hora de decidir ou não pelo aborto, afirma Simone Mendes. “A pesquisa mostrou que o aborto não é uma decisão tomada individualmente e que os parceiros amigos e familiares também participam e compartilham na decisão”.

Segundo Simone Mendes, as mulheres mostraram conhecimento em relação à utilização de métodos anticoncepcionais. A adaptação a eles ou a não utilização, entretanto, representaram um entrave tanto em termos reprodutivos como em termos de risco de contrair DSTs. “Sabemos que as unidades básicas de saúde fornecem anticoncepcionais orais, porém nem sempre é realizado um acompanhamento dos efeitos que essa pílula causa na mulher e o seu processo de adaptação. Quanto à camisinha, o problema relatado pela maioria é a dificuldade na negociação do uso com o parceiro, principalmente quando eles se tornavam fixos (namorado, ou morando junto)”, circunstância que a autora atribui impacto na ocorrência de gravidezes indesejadas e não planejadas.

As dificuldades de adequação ao uso de contraceptivos parecem menores diante do quadro de risco para a saúde que os abortos clandestinos representam. As jovens de baixa renda são as mais expostas aos perigos das práticas muitas vezes amadoras. Técnicas precárias, procedimentos sem segurança e condições insalubres são aspectos comuns que estas mulheres enfrentam quando decidem interromper a gestação. Na pesquisa de Simone Mendes, 12 casos de aborto foram seguidos de complicações, tais como hemorragia, cólica, desmaio e febre.

Estas complicações levam mulheres a procurar serviço de saúde, momento em que enfrentam novas dificuldades, tais como qualidade ruim do acolhimento, caracterizado por situações de discriminação, queixa também recorrente das entrevistadas.

Pesquisa recente do Ipas Brasil reitera essa percepção da realidade. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, no ano de 2008 foram registradas 15.868 internações de mulheres entre 10 e 49 anos que resultaram de métodos inseguros de aborto. O relatório do estudo foi apresentado no início de maio em audiência pública realizada pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e de Cidadania da Assembléia Legislativo do Rio de Janeiro (Alerj). Grande parte das mulheres da pesquisa também foi vítima de preconceito no atendimento hospitalar.

Pesquisa HEXCA

Coordenada pela antropóloga Maria Luiza Heilborn (CLAM/IMS/UERJ), a pesquisa Heterossexualidade, Contracepção e Aborto consiste em um estudo, em fase de elaboração do relatório final, sobre práticas contraceptivas e abortamento voluntário. O estudo qualitativo, que também foi desenvolvido em Buenos Aires, Bogotá e Montevidéu, reúne experiências femininas e masculinas de gerações (início da vida sexual e fim da vida reprodutiva) e segmentos sociais distintos (classes populares e médias).

No estudo, foram entrevistados 30 mulheres e 30 homens, distribuídos em cotas por faixa etária: 15 indivíduos do sexo masculino e 15 do sexo feminino tinham entre 18 e 27 anos; o restante com idades entre 40 e 49 anos. O objetivo é avaliar como se dá o processo decisório da interrupção da gravidez. A análise dos diferentes momentos da vida reprodutiva e sexual possibilita, no entender dos pesquisadores, situar as transformações que atravessam as gerações, sobretudo no que concerne as relações de gênero e o surgimento de novos métodos e medicamentos de regulação da fecundidade, como é o caso da chamada pílula do dia seguinte.

De acordo com Maria Luiza Heilborn, a questão do aborto parece, a princípio, um assunto de mulher. Segundo dados da pesquisa HEXCA, fica claro que a decisão de realizá-lo não é tomada de maneira isolada. “Em geral, é uma decisão coletiva, ora compartilhada com os parceiros, ora com familiares e amigas. Apenas em um caso a “entrevistada não contou a ninguém sobre a gravidez”, afirma.

A pesquisa faz um mapeamento das circunstâncias afetivas, conjugais, familiares e econômicas que permeiam cada gestação. Maria Luiza Heilborn aponta três fatores que concorrem para a decisão de abortar. “O primeiro fator é o grau de envolvimento com o parceiro. É um relacionamento estável, extemporâneo – como o ‘ficar, por exemplo -, ou extraconjugal? O segundo elemento é a condição econômica na qual a mulher ou o casal está envolvido. Qual é a condição para sustentar o filho? O terceiro elemento importante é a faixa etária das pessoas, porque percebemos que os abortos acontecem principalmente no início da trajetória sexual, ou seja, quando há ainda um aprendizado da maneira de lidar com a contracepção e com as relações sexuais regulares, que expõem à propensão de uma gravidez”, enumera Maria Luiza Heilborn. Mas isso não significa que as gestações não ocorram em outras etapas da vida reprodutiva.

Ironicamente, as mulheres, especialmente as de camadas populares, encontram na gravidez levada a termo a senha de acesso para um planejamento reprodutivo. “Há uma deficiência no sistema de saúde do Brasil, na atenção à contracepção. O serviço não tem condição de atender à demanda das mulheres ditas solteiras. É quase uma triagem invisível que acaba priorizando as mulheres que já passaram por uma gestação”, explica.

Participação dos homens

O retrato sexual e reprodutivo esboçado pela HEXCA traz também a participação dos homens. Foi observado um contraste importante no modo de envolvimento com o assunto no que concerne aos segmentos sociais em que eles estão inseridos – diferenciado segundo anos de escolaridade e nível de renda. O estudo revela que os parceiros de classe média participam mais e têm maior conhecimento sobre as condições em que o aborto é realizado do que os companheiros de camadas populares. Estes últimos, enfatiza Maria Luiza Heilborn, às vezes sequer sabem como foi feito o procedimento.

Mesmo sendo uma escolha compartilhada, a participação dos companheiros, sobretudo nas camadas médias, constitui uma concessão. A entrada do homem nesse processo, portanto, é um assunto relativo a cada caso. “Eles estão presentes quando as mulheres deixam. É necessário ter claro que os casos são extremamente variados, vai depender da maneira como as relações da parceria estão estruturadas e também do contexto cultural no qual os sujeitos vivem. Se, no contexto cultural, a autonomia feminina é valorizada, poderá acontecer que uma mulher decida pelo aborto sem consultar absolutamente o parceiro. Isso também pode acontecer nas camadas populares em função, por exemplo, se ela achar que aquele determinado rapaz com quem ela se relaciona não é ideal para constituir família”, exemplifica Maria Luiza Heilborn.

Apesar de os abortos se concentrarem no início da vida sexual e reprodutiva, eles não são raros no final do ciclo das mulheres. Nesse ponto, há uma questão interessante a ser destacada. De acordo com a coordenadora da HEXCA, na faixa etária dos 40 aos 49, “é normal no mercado amoroso heterossexual mulheres que estiverem separadas terem relações mais esporádicas. É mais difícil arranjar um parceiro regular, porque os homens tendem a preferir mulheres mais jovens. E aí, você tem relações mais eventuais”, afirma. Nesse sentido, continua a pesquisadora, “o fato de terem relações irregulares faz com que, na verdade, essas mulheres não tenham cuidados contraceptivos. Para que tomar pílulas o tempo inteiro se elas não têm parceiros sempre?”.

A atenção dada às mulheres que se encontram no final da vida reprodutiva também foi esclarecedora no sentido de permitir uma avaliação sobre as condições em que estas mulheres, hoje na faixa dos 40-49 anos, realizaram aborto quando estavam iniciando suas vidas sexuais e reprodutivas. Segundo Maria Luiza Heilborn, antigamente as condições para efetivação do aborto eram piores, o que mudou recentemente com o recurso do misoprostol (princípio ativo do Cytotec).

Apesar disso, ela ressalva que o recurso às curiosas ainda é comum. Ele foi mencionado pelas mulheres de ambas gerações. Todavia, “as mais jovens, que também recorrem às curiosas, são aquelas em condições de extrema vulnerabilidade social”.

Clandestinidade e desigualdade

A clandestinidade do aborto no Brasil, destaca a coordenadora do HEXCA, é extremamente lesiva à saúde das mulheres, e especialmente desigual em termos de condições sociais. “O acesso ao aborto é barbaramente diferenciado em função da classe social. Nas camadas médias, é possível realizar em clínicas bem aparelhadas, cujos endereços são conhecidos. Uma pessoa com dinheiro tem toda a condição de fazer um aborto seguro, ainda que clandestino”, afirma, acrescentando casos de moças de camadas médias, com nível superior, que sequer sabiam que podiam ser presas porque tinham feito um aborto. “Trata-se de um assunto que se enquadra na ilegitimidade jurídica, mas não possui uma ilegitimidade social”.

Nestas circunstâncias, Maria Luiza Heilborn afirma que vivemos um estado de hipocrisia na sociedade brasileira, com situações ilegais sendo praticadas corriqueiramente no dia-a-dia e que não se restringem ao tema do aborto. “Quem de fato sofre com condições extremamente adversas, complicadas e que colocam em risco à vida, são as mulheres pobres que, inclusive, às vezes, sequer tem acesso ao conhecimento sobre o misoprostol e aí recorrem a uma curiosa. E ainda existem os casos de talos de mamona e lugares absolutamente infectos. Nós registramos o caso de uma moça de 25 anos, que já teve 6 gestações e 4 abortos. Ela fazia uso regular da pílula do dia seguinte. Quando profissionais do posto de saúde viu que ela foi mais uma vez recorrer à pílula do dia seguinte, eles não deram mais. Ela então passa por nova gravidez e aborto”, ilustra a coordenadora do HEXCA.

Segundo a pesquisadora, a legalização do aborto seria uma maneira, em primeiro lugar, de garantir direitos reprodutivos para as mulheres, condicionando o aborto a um tempo de realização, em torno de 12 semanas. “Há uma contradição entre direitos: os autoproclamados defensores pró-vida acham que há o direito do feto como se ele fosse em si um portador de direitos. O feto é uma pessoa a se constituir; há, de outro lado, uma mulher gestante, cuja vida não possui qualificativos. Ela é um sujeito de direito já constituído. O debate mais avançado em torno da ponderação de direitos deve avaliar a qualidade de vida que o feto, ao nascer e se tornar então criança, terá em termos afetivos, de aceitação. Só nessa condição um ser em potencial ganha a condição de pessoa.

“Em termos de políticas públicas, para você garantir equidade de direitos só é possível descriminalização e legalização do aborto no sentido de que a rede pública teria que prover isso. Evidentemente o lema de todas as pessoas que defendem esta causa é que o aborto seja um evento raro e seguro. Não é para ser usado como método contraceptivo. Ele poderá acontecer em determinados momentos de falha da prática contraceptiva. Se ele fosse integrado ao sistema de saúde, essas mulheres que por diversos motivos e circunstâncias não podem levam a gravidez a termo já seriam capturadas pelo serviço público, pelo SUS, e poderiam ter acompanhamento efetivo em termos de planejamento reprodutivo, evitando futuros abortos”, defende.

Maria Luiza Heilborn chama atenção para a batalha que se trava com a Igreja Católica em torno da questão do aborto, cuja notória e feroz oposição é secular. “Acho que é uma obrigação do Estado brasileiro, como um Estado democrático e laico, de não se subordinar aos interesses religiosos. Porque ninguém é obrigado a fazer um aborto. Então, eu acho que é uma questão de prover um quadro jurídico e de políticas públicas que possa, em suma, criar condições de saúde pública e, sobretudo, de garantir direitos reprodutivos para homens e mulheres”.

“A luta pelo aborto não é um tema apenas do movimento feminista. Há vários atores que defendem essa luta: médicos, psicólogos, economistas, operadores do direito. É um assunto multidisciplinar, há vários olhares dirigidos à questão da legalização e descriminalização”, afirma. De acordo com a coordenadora do HEXCA, a retirada do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNHDH-3) da legalização e descriminalização do aborto, diante de forte oposição da Igreja Católica e da imprensa mais conservadora à inclusão do item no PNDH-3, é um retrocesso muito grande. “A legalização em nenhum lugar do mundo levou ao aumento do número de abortos e isso é ignorado”, completa.

“Eu estou numa posição realista pessimista, porque sei que este é um tema de grande luta, sobretudo no Brasil: há uma estratégia global da Igreja Católica em recrudescer seu prestígio onde ela tem uma população que poderá ser sua clientela ou constituir seu corpo de fiéis. Na Europa, em função da crescente secularização das sociedades, ela não mais encontra o eco que antes detinha o seu discurso. Acho que há espaço para religião, mas não deve ser imposta pelo Estado”, conclui.